Categorias
Brasil-África Ensino História Textos

Trabalho sobre o Festival Negro e Africano das Artes e da Cultura, FESTAC.

O FESTAC, a divulgação da cultura africana e o Brasil: problemas e convergências

Por Victor Piaia

O Festival

Nos meses de janeiro e fevereiro de 1977, foi realizado na Nigéria o II Festival Negro e Africano das Artes e da Cultura, o FESTAC. O primeiro festival havia acontecido em 1966, em Dakar, Senegal. Os dois projetos representavam, neste primeiro momento, a emergência e a afirmação dos países e da identidade africana perante o mundo, funcionavam como pontes e ao mesmo tempo amplificadores de divulgação e troca de culturas e entre os países ricos e colonizadores e os africanos, já em grande número, independentes.

O objetivo deste trabalho será mostrar a importância do festival como um símbolo de afirmação negra e africana para o mundo, mas também para as populações africanas dos mais diversos países. Ao mesmo tempo, pretendo demonstrar a relação fundamental entre o petróleo e a cultura, que motivou e permeou a realização do segundo  festival, dando ênfase nas mudanças ocorridas na organização e na população africana a partir deste momento.  A segunda parte do trabalho será como um estudo de caso de como o festival pôde servir como um canal de diálogo e trocas focalizando a presença de artistas brasileiros no evento.

O trabalho, portanto, tem o objetivo maior de se constituir em uma fonte simples e direta, introduzindo essas temáticas em sala de aula como novos fatores a serem analisados por alunos e professores em relação à História da África. Ele justifica-se, deste modo, por ser uma síntese de fontes muito fragmentadas sobre o tema e por tratar das formas de difusão da cultura africana em relação aos projetos políticos, econômicos e sociais internos, bem como apontar as pontes entre o festival e a cultura e intelectualidade brasileira.

O festival aconteceu, mais especificamente, entre os dias 15 de janeiro e 12 de fevereiro nas cidades de Lagos e Kaduna e sua palavra de ordem era a comemoração da individualidade, da antiguidade e do poder do mundo Negro e Africano. O evento vinha amparado por toda uma ideologia descolonialista e pan-africanista, gestadas principalmente durante a década de 60, inclusive, durante a primeira edição do festival, em Dakar (1966), que, segundo Abdias do Nascimento, tinha o sentido de “marcar o momento da conquista da independência dos países africanos com uma homenagem ao papel de sua cultura, mundialmente difundida, como catalisadora do processo libertário”[1].

No entanto, já contava com algumas discordâncias em relação aos fundadores da ideia do pan-africanismo da Negritude, especialmente do presidente do Senegal, Léopold Sédar Senghor, que criticava duramente o posicionamento de países como o Brasil, Cuba, a Liga Árabe e até a própria Nigéria de que o pan-africanismo deveria ficar sob a tutela de um movimento árabe-africano teoricamente ecumênico, que lutaria sem que as bandeiras sócio-raciais fossem levantadas.[2].

O Festac contou com a presença demais de 60, cada um trazendo comitivas com até seiscentas pessoas. Para comportar tantos participantes é necessário se atentar para o papel importante da Nigéria neste momento. Quinto maior país produtor de petróleo do mundo, a escolha da Nigéria para sediar este grande evento deve ser analisada segundo quatro perspectivas, segundo o professor de política econômica e relações internacionais da Universidade de Lagos, Tande Babawale: O cultural, o político, o institucional e o diplomático[3].

Segundo uma perspectiva cultural, Babawale, o Festac serviu não só como um ponto de divulgação e resgate da rica herança cultural negra e africana, mas também como um local de convergência entre a cultura africana e os africanos da diáspora, que muitas vezes se viam em uma crise de identidade sobre suas origens, mas agora ganhavam uma referência africana em relação ao mundo. O festival também tem profunda importância do ponto de vis externo, quebrando com a ideia de que a colonização europeia foi a responsável pela disseminação cultural na África, ignorando toda a tradição anterior.

O festival foi aberto para quatro tipos de participantes: Países africanos, todas as comunidades negras do mundo, todos os movimentos de libertação reconhecidos pela OUA[4] e para os membros dela. Contava principalmente com atividades de música, teatro, cinema, exposições, colóquios, dança, entre outros.

Do ponto de vista político, o autor afirma que o sistema “democrático” instaurado pela dominação colonial nos países africanos foi extremamente violento contra os valores culturais africanos, porém, isto não significa dizer que eles são incompatíveis. A Nigéria, neste caso, teria um papel fundamental na promoção da ideia da formação de um consenso político partindo de uma harmonia e celebração cultural. Ele afirma também que adotando essa postura de liderança, a Nigéria consolidava sua posição em relação aos outros países africanos.

Em relação aos outros países, este posicionamento da Nigéria também ganha força, investindo numa entrada cultural do ponto de vista diplomático. Esta preocupação não se restringe a aparências abstratas no jogo de poder internacional, mas também a própria execução do evento. A Nigéria ao mesmo tempo que investia na divulgação cultural, também deveria se mostrar preparada para a realização de eventos desse porte.

Seguindo esta linha é importante atentar para poder simbólico do caráter monumental do Teatro Nacional, construído especialmente para o Festac. Visto externamente o teatro se assemelha com uma coroa saindo da terra, mas ao mesmo tempo podemos associá-lo a uma perspectiva militar, representando o chapéu utilizado pela alta oficialidade das forças armadas. Ocupa um terreno de 23 mil metros quadrados e tem 30 metros de altura. Por dentro, no espaço principal conta com assentos para cinco mil pessoas, tendo suas menores salas de conferências assentos para 1500 participantes. Todos os assentos têm entrada para fones de ouvidos, de onde era possível assistir todas as palestras com tradução simultânea. Ao todo foram realizados mais de 250 trabalhos no local, que também servia como principal palco para as performances artísticas[5].

Ao mesmo tempo, é importante que se ressalte outras perspectivas sobre o festival, problematizando questões e saindo de uma visão romântica da celebração cultural. O artigo FESTAC for black people: oil capitalism and the spectacle of culture in Nigeria, do antropólogo Andrew Apter, da Universidade de Chicago, trabalha com a realização do festival em meio a um contexto de ascensão política e econômica da Nigéria impulsionado pela indústria petrolífera.

Na sua visão, o principal motivo para a realização do evento foi a inserção da Nigéria do ponto de vista geopolítico internacional, mostrando o desenvolvimento de uma economia altamente controlada pelo Estado baseada no petróleo e no volume altíssimo e repentino de riquezas e transformações estruturais que passou o país. Numa a Watts (1992) em seu texto, Apter afirma que o Festac celebrou o casamento entre a “cultura tradicional” e o “capitalismo rápido” (agressivo), tornando-se um instrumento de mercantilização da cultura africana.

Associada é um certo fetichismo, o Festac buscava amenizar as contradições entre a grandiosa riqueza do Estado, com as condições de vida da população da Nigéria, ainda que, neste momento, grandes obras estruturais estivessem em construção no país. Deste modo a arte e a cultura iam se adequando ao discurso pretendido pela elite governamental do país, que objetivava repercussões muito além do que era divulgado.

A vinda de comitivas de mais de 60 países fez com que a Nigéria tivesse que se adequar a uma organização burocratizada e racionalizada do evento. Tanto em relação a distribuição em hotéis, alimentação e lazer, quanto na própria confecção do que iria ser apresentado. O rigor dos horários e a necessidade de se seguir a agenda prevista, respeitando o espaço de cada uma das manifestações e apresentações de trabalho eram pontos importantes na exposição deste projeto.

Esta característica acabou por desconfigurar, em muitos casos, os próprios rituais e intervenções a serem apresentadas; mais do que isso, coube ao governo organizar as manifestações e exposições de maneira a forjar uma unidade cultural africana. Deste modo, o evento que na sua grande divulgação pregava a diversidade cultural africana, na verdade, internamente, trabalhava com a cooptação de artistas financiados pelo próprio governo, excluindo o que fugia do padrão pretendido originalmente. Apter aponta inclusive para um enorme crescimento de corretores de cultura especializados em vender imagens, ícones e ideias pretensamente tradicionais africanas para consumidores estrangeiros.

Endossando o discurso de Apter, também podemos encontrar acusações desse tipo vindo do, talvez, artista africano mais importante do século XX, o nigeriano Fela Kuti, que se recusou a participar do evento:

“Cara! O Festac foi uma grande embromação! Puro roubo! E eles até tentaram me envolver naquilo; com aquela conversa toda, sendo bonzinhos, sabe?… Primeiro, me convidaram para uma reunião do “Comitê Nigeriano de Participação Nacional”, que tava acontecendo no hotel Bagauda Lake, na cidade de Kano. Isso foi em 1976. Quem convocou essa reunião foi o Major-General I.B.M. Haruna. Em todo caso, ele veio com demagogia, dizendo que tava “aberto” a ideias novas e esse tipo de coisa… Então, pra dar uma consistência ao Festac, apresentei um plano com nove tópicos. O primeiro tópico do meu plano exigia a participação do povo. Denunciei como as culturas dos povos nigerianos eram tratadas de modo banal e assim por diante. Depois, condenei as “negociatas” que tavam rolando. Mas o Major-General Haruna rejeitou minhas propostas”. (MOORE: 2011)

No mesmo livro, Fela fala sobre como fez resistência aos acontecimentos durante os primeiros meses de 1977. Por ser uma referência musical em todo o mundo, Fela atraia os maiores músicos e artistas para seções realizadas após o fim dos trabalhos nos dias de festival. No Santuário, sua casa de shows, ele organizava algo como um festival paralelo, onde os artistas de todo o mundo trocavam o que seria a “verdadeira cultura nigeriana” com as suas respectivas.

Fela também fazia uma forte intervenção política nesses eventos, denunciando ao mundo os problemas dos países africanos, principalmente, a repressão e a tirania de seus políticos. Não a toa, exatamente no mesmo dia do término do festival, o local onde morava, chamado de “República de Kalakuta”, foi cercado por cerca de mil militares nigerianos, que a invadiram, espancando e prendendo os homens, estuprando e humilhando as mulheres. A violência foi tanta que até a mãe de Fela, de 77 anos, foi jogada de uma janela. Os ferimentos a levaram ao hospital, da qual só saiu morta.

Ou seja, a Festac se mistura entre uma grandiosa representação africana no mundo, sendo reconhecida até hoje como o mais bem sucedido evento desta natureza no continente, mas também demonstra que a lógica dos acontecimentos nem sempre ocorre de uma maneira pacífica. O poder altamente centralizado na mão do governo, tanto político, quanto econômico, permitiu que muito além de cultura e música fosse feito o festival. Os objetivos políticos, diplomáticos e a violência contra a cultura tradicional da população também foram temáticas muito comuns durante o festival, que apesar de tudo, teve um papel importante para o reposicionamento da África no mundo.

O Brasil na Festac

Esta segunda, e mais breve, parte do artigo consistirá em mostrar a atuação e os impactos da participação brasileira no evento. O Brasil é um país muito identificado com a África, algo que é reconhecido também pelos africanos, deste modo, a presença brasileira foi algo que teve relevância tanto nos debates e shows, quanto no aspecto político, como vamos observar a seguir.

Nas artes plásticas fomos representados por artistas como: Maurino dos Santos, Emanuel Araújo, Rubens Valetim, Juarez Paraíso Geraldo Teles Oliveira, Boaventura da Silva, Miguel dos santos, Octávio Araújo, Francisco Biquiba, José Dome e Waldeloir Rego. Já no cinema também tivemos presença, com a exibição de filmes como: Partido Alto, de Rubens Confete; Artesanato do Samba, de Vera Figueiredo e Zózimo Bulbul e Isto é Pelé, de Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto. Houve também a presença de nomes religiosos, como a Ialorixá Olga do Alaqueto, com as filhas de santo, ligadas ao universo dos orixás reata os laços brasileiros e africanos[6].

Na música tivemos como maiores destaques a presença de Gilberto Gil e Caetano Veloso, que tiveram a ida anunciada nos jornais. Gilberto Gil não só aceitou o convite como montou uma banda especial para o evento. A repercussão do evento não se ateve somente aos dias de seu funcionamento, mesmo antes, aqui no Brasil, Gil preparou um pequeno trailer mostrando as raízes dessa combinação de culturas que foi exibido em Salvador, nos dias sete, oito e nove de janeiro do mesmo ano.

O disco Refavela foi gravado logo depois da experiência no festival. Mais do que uma troca de sonoridades, é importante perceber a figura pública que é Gilberto Gil, tomando consciência e contato com uma realidade normalmente somente idealizada pelos brasileiros. Em suas palavras:

“Em 77, eu fui participar do Festac, festival de arte e cultura negra, em Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas.[7]

No entanto, a presença mais impactante no festival foi, sem dúvidas, a de Abdias do Nascimento. Abdias, que nesta época já estava completamente envolvido com a causa do pan-africanismo e da negritude havia preparado um trabalho para ser apresentado no evento intitulado “Democracia racial no Brasil: Mito ou realidade?”[8]. No entanto, como já citado anteriormente, o Brasil fazia parte de um grupo de países, incluindo a Nigéria, que desejava o movimento da Negritude atrelado a órgãos que o “desconfigurariam”, deste modo, houve uma fortíssima pressão do governo brasileiro para que o governo nigeriano impedisse a apresentação do mesmo, o que acabou acontecendo[9].

Este episódio é uma ponte muito clara de como as relações raciais e o projeto da negritude são complexos e são muito dependentes dos desígnios governamentais. O Brasil, ao proibir a exposição de Abdias, confirmava o próprio texto combatia. Sua participação, no entanto, não se restringiu a esta exposição. Devemos entender a importância destes eventos e dos contatos traçados neles como momentos de construção do pensamento do que viria a se tornar um dos maiores intelectuais da causa negra no Brasil. O próprio episódio aqui brevemente descrito foi narrado com maiores detalhes no livro Sitiado em Lagos, publicado por Abdias, depois do ocorrido.

Deste modo podemos perceber que o Festac de 1977 foi um evento de diversas facetas. Ao mesmo tempo em que cumpria um papel fundamental de troca e difusão das culturas africanos e internacionais, pode ser enxergado também como um retrato de um governo altamente centralizado e pretensamente democrático, mas que em muitos momentos refletia a repressão e a adequação tão presente nos regimes autoritários. Do mesmo jeito, ele também nos ajuda a perceber características do próprio Brasil, seja na facilidade da comunicação e nas raízes comuns com África, seja na dificuldade de se confrontar o discurso da Democracia Racial.

Bibliografia:

APTER, Andrew. FESTAC for black people: oil capitalism and the spectacle of culture in Nigeria“.Disponível em: http://quod.lib.umich.edu/p/passages/4761530.0006.002?rgn=main;view=fulltext

BABAWALE, Tande. Nigeria and FESTAC ’77: A role analysis. Disponível em: http://nationalmirroronline.net/arts_culture/arts_culture_news/24549.html e http://nationalmirroronline.net/news/25022.html

MOORE, Carlos. Abdias Nascimento e o surgimento de um Pan-africanismo contemporâneo global. Disponível em: http://www.abdias.com.br/exilio/exilio.htm

MOORE, Carlos. Fela: Esta Vida Puta. Belo Horizonte: Nandyala, 2011 [1982]

NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estud. av. [online]. 2004, vol.18, n.50, pp. 209-224. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100019&lng=en&nrm=iso

PHYLON, James H. Kennedy. Political Liberalization, Black Consciousness, and Recent Afro-Brazilian Literature (1960-) , Vol. 47, No. 3 (3rd Qtr., 1986), pp. 199-209 Published by: Clark Atlanta University Article Stable URL: http://www.jstor.org/stable/274987

Watts, Michael, “The Shock of Modernity: Petroleum, Protest and Fast Capitalism in an Industrializing Society.” In A. Pred and M. Watts, Reworking Modernity: Capitalism and Symbolic Discontent. New Brunswick, N.J.: RutgersUniversity Press, 1992:21-63.

Sites

http://www.abdias.com.br/o_que_falam/kabengele.htm

http://www.abdias.com.br/exilio/exilio.htm

http://www.youtube.com/watch?v=Upids9Ro6ws

http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=13&texto

http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=351&letra


[1] NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estud. av. [online]. 2004, vol.18, n.50, pp. 209-224. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100019&lng=en&nrm=iso&gt;

[2] MOORE, Carlos. Abdias Nascimento e o surgimento de um Pan-africanismo contemporâneo global. Disponível em: <http://www.abdias.com.br/exilio/exilio.htm&gt;

[4] Organização da Unidade Africana

[5] APTER, Andrew. FESTAC for black people: oil capitalism and the spectacle of culture in Nigeria”.Disponível em: http://quod.lib.umich.edu/p/passages/4761530.0006.002?rgn=main;view=fulltext

[6] FESTAC -Festival de Arte e Cultura Negra -Nigéria 1977. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=3mTgXYwjA3s&feature=relmfu

[8] Political Liberalization, Black Consciousness, and Recent Afro-Brazilian Literature James H. Kennedy Phylon (1960-) , Vol. 47, No. 3 (3rd Qtr., 1986), pp. 199-209 Published by: Clark Atlanta University Article Stable URL: http://www.jstor.org/stable/274987

Por africaemquestao

O blog apresenta, desenvolve e divulga fontes: Resenhas (de livros, filmes, exposições e eventos), Entrevistas (com professores, artistas, intelectuais e cidadãos – conhecidos e anônimos), Publicações, Música, Eventos e outras Iniciativas que ampliem o interesse sobre África, seu ensino e estudo no Brasil. Esperamos que esse blog sirva como um canal polifônico de questões sobre o continente.

Deixe um comentário